Contribuições ao Pensamento

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Livro de Silo. Escrito em espanhol em 1989.

Explicação

Este livro consta de dois ensaios reflexivos em torno de temas que aparentemente se enquadram dentro da Psicologia e da Historiografia segundo revelam seus respectivos títulos: Psicologia da Imagem e Discussões Historiológicas.

Conferência autor

Centro Cultural San Martín. Buenos Aires, Argentina. 4 de Outubro de 1990

Comentar o livro que se acaba de editar, comentar, digo, Contribuições ao Pensamento, parece tarefa um pouco técnica, e se este é o tratamento que nos é exigido pelo presente material, devemos esclarecer que trataremos de fazer uma apresentação em que sobressaiam os pontos principais do escrito, sem chegar a rigores excessivos. Será esta, ademais, uma exposição breve.

Este livro, como sabemos, consta de dois ensaios reflexivos em torno de temas que aparentemente se enquadram dentro da Psicologia e da Historiografia segundo revelam seus respectivos títulos: Psicologia da Imagem e Discussões Historiológicas. Mas já se verá como ambos estudos se entrelaçam apontando ao mesmo objetivo que é o de concluir as bases para construção de uma teoria geral da ação humana, hoje em dia não suficientemente fundamentada. Quando falamos de uma teoria da ação não estamos propondo somente a compreensão do trabalho humano como o faz a praxiologia de Kotarbinski, Skolimowski ou em geral a escola polaca que, por certo, tem o mérito de haver desenvolvido o tema in extenso. Nós nos dirigimos melhor à compreensão do fenômeno de origem da ação, de seu significado e de seu sentido. Desde já, poderá objetar-se que a ação humana não requer de nenhuma justificação teórica; que a ação é antípoda da teoria; que as urgências do momento são por demais práticas; que os resultados da ação se medem em termos de ganhos concretos e que, por último, não é este o momento de teorias nem de ideologias já que estas têm demonstrado seu fracasso e seu desmoronamento definitivo, deixando por fim o caminho livre para a realidade concreta, caminho esse que deve apontar-se à escolha das circunstâncias mais adequadas para se conseguir a ação eficaz.

O fardo de objeções anteriores mostra um indubitável pano de fundo pragmático que, como sabemos, se exibe cotidianamente como uma atividade anti-ideológica que submete o valor de sua autenticidade à realidade mesma. Mas os defensores de tal atitude nada nos dizem em torno de que coisa é essa realidade que mencionam, nem entre que parâmetros se coloca a ação para ser medida como “eficaz”. Porque se o conceito de “realidade” fica reduzido a uma grosseira comprovação perceptual, nos mantemos dentro da superstição que a ciência desmente a cada passo de seu desenvolvimento. E se é mencionada a “eficácia da ação” será bom, como mínimo, estabelecer se o suposto êxito desta se mede em termos imediatos concluindo no fato mesmo, ou se suas conseqüências continuam desenvolvendo-se ainda quando a ação haja terminado. Porque se dizemos o primeiro, não se adverte como uma ação pode conectar-se com outra, ficando o campo livre para a incoerência ou para a contradição entre a ação de um momento B em relação à ação do momento A. Se, ao contrário, existem conseqüências da ação, é claro que em um momento A estas podem ser vitoriosas e que em um momento B deixem de sê-lo. Enfim, esta ideologia que pretende não sê-la, deve ser contestada como digressão mesmo com risco de uma queda de nível expositivo, porque inclusive sendo escasso o valor argumental desta ideologia, alcançou uma certa instalação como crença pública, o que faz gerar reações desfavoráveis frente a todo proposta como a que apresentamos.

Por nossa parte, apreciamos o valor das formulações teóricas em torno do problema da ação e enquadramos a nossa concepção dentro das posturas ideológicas, entendendo por “ideologia” a todo conjunto de pensamento, científico ou não, que se articula em sistema de interpretação de uma determinada realidade. E, desde outro ângulo, resgatamos para nós uma total independência com respeito às teorias que, nascidas no século passado, demonstraram seu fracasso não somente prático senão, sobretudo, teórico. Assim pois, a queda das ideologias do século XIX em nada diminui, muito pelo contrário, as novas concepções que hoje estão em processo de gestação. Ademais, dizemos que tanto “O Fim das Ideologias” preconizado por Daniel Bell na década de ’60 e “O Fim da Historia” anunciado há pouco tempo por Fukuyama respondem a uma percepção antiquada porque tendem a encerrar um debate que em termos ideológicos ficou esgotado já na década de ’50, certamente muito antes de que algumas espetacularidades políticas atuais sobressaltassem aos que advertiram com atraso o passo da História, hipnotizados como estavam com os presumíveis do êxito prático. Assim é que este pragmatismo idoso, cujas raízes encontramos no Metaphisycal Club de Boston desde 1870 e que James e Peirce expuseram com a modéstia intelectual que os caracterizava, fracassou também em termos ideológicos, há muito tempo e agora só resta ver as espetacularidades que hão de acabar com os presumíveis do “Fim da Historia” e do “Fim das Ideologias”.

Esclarecido o objetivo que propõe o presente livro, isto é, largar as bases para construção de uma teoria geral da ação humana, iremos aos pontos mais importantes do primeiro trabalho intitulado Psicologia da Imagem. Nele se trata de fundamentar uma hipótese segundo a qual, a consciência não é produto nem reflexo da ação do meio, mas sim que, tomando as condições que este impõe, termina por construir uma imagem ou um conjunto delas capaz de mobilizar a ação em direção ao mundo e com isto modificá-lo. O produtor da ação se modifica com ela e em contínua realimentação se evidencia uma estrutura sujeito - mundo e não dois termos separados que, ocasionalmente, interagem. Por tanto, quando falamos de “consciência” o fazemos em simples acordo com o enfoque psicológico que impõe o tema da imagem, mas por nossa vez entendemos a consciência como o momento da interioridade na abertura da vida humana no mundo. De acordo com o anterior, a esse termo se deve compreender no contexto da existência concreta e não separado dela, como costuma fazer-se nas diferentes correntes psicologistas. No trabalho que comentamos, é de especial importância a determinação dos fenômenos de representação com referência a espacialidade, precisamente porque graças a isto o corpo humano pode deslocar-se e, em suma, atuar no mundo de modo que lhe é característico. Se utilizássemos a explicação reflexológica teríamos, em parte, solucionado o problema mas eis que a resposta diferenciada frente aos estímulos, a resposta postergada, necessita de uma compreensão mais ampla. E se falamos de uma elaboração na qual o sujeito chega a conclusão de operar em uma direção e não em outra, se nos dilui tanto o conceito de reflexo que ao final não explica nada.

Para o estudo da consciência convertida em conduta, buscamos antecedentes encontrando-nos com vários estudiosos e pensadores entre os quais sobressai Descartes, que em uma singular epístola enviada a Cristina de Suécia fala do ponto de união entre pensamento e mobilidade do corpo. Quase trezentos anos depois, Brentano introduz na Psicologia o conceito de intencionalidade que a escolástica em seu momento havia resgatado ao comentar Aristóteles. Mas é com Husserl que o estudo da intencionalidade se esgota, particularmente em suas “Idéias Relativas a uma Fenomenologia Pura e uma Filosofía Fenomenológica”. Este autor, ao pôr em dúvida os dados do mundo externo e ainda os do mundo interno, seguindo a melhor tradição da reflexão estrita, abre o caminho da independência do pensar em relação a materialidade dos fenômenos, pensar que até este momento se encontrava asfixiado na pinça que, por um lado, era representada pelo idealismo absoluto hegeliano e, por outro, pelas ciências físico-naturais, naquele momento em rápido processo de desenvolvimento. Husserl não ficará no simples estudo do dado hilético, material, mas produzirá uma redução eidética a partir da qual já não se poderá voltar atrás. Com referência a espacialidade da representação em geral, há que considerá-la como uma forma da qual os conteúdos não podem ser independentes. Com distinta amplitude, comprovará que a cor em toda imagem visual não é independente da extensão. E este ponto é de importância capital porque instala a forma da extensão como condição de toda representação. É daí onde esta assertiva é tomada por nós como a base teórica da formulação da hipótese do espaço de representação.

O exposto sem dúvida, requer de algumas explicações auxiliares que consideraremos muito na superfície. Em primeiro lugar haveremos de entender a sensação como o registro que se obtém na detecção de um estímulo proveniente do meio externo ou interno e que faz variar o tom de trabalho do sentido afetado. Por outra parte, compreenderemos a percepção como uma estruturação de sensações efetuada pela consciência, referida a um sentido ou a um conjunto deles. Sabemos bem que já na mais elementar sensação existe um fenômeno de estruturação, mas concedendo à Psicologia clássica uma aproximação a nosso tema, não discutiremos excessivamente as definições anteriores. Por último, diremos da imagem que se trata de uma representação estruturada e formalizada das sensações ou percepções que provêm ou provieram do meio externo ou interno e que, precisamente pela estruturação que efetuam, não podem ser consideradas como meras “cópias” passivas das sensações, segundo acreditou a Psicologia ingênua. Em uma discussão com a Psicologia atomista, chegamos a conclusão que tanto as sensações, como as percepções e as imagens, são formas de consciência e que seria mais correto falar de “consciência da sensação, consciência da percepção e consciência da imagem”, sem necessitar para isso colocar-nos em atitude não-perceptiva. O que se quer dizer é que a consciência modifica seu modo de estar, que esta não é senão um modo de “estar”, por exemplo “emocionada”, “ansiosa”, etc. De acordo com a idéia de intencionalidade, é claro que não há consciência senão de algo e que esse “algo” não pode escapar a espacialização do representar. Assim como todo representar, enquanto ato de consciência, se refere a um objeto representado e não se pode separar um do outro por formarem uma estrutura, a ação de representar qualquer objeto inclui o ato correspondente de consciência na espacialidade daquele. E por mais que se experimente com representações externas que têm por base os cinco sentidos clássicos, como aquelas internas que se originam na cenestesia ou na cinestesia, sempre se espacializará. Por outra parte, assim como a espacialidade da sensação e percepção estão referidas à localização em “lugares” do corpo onde se alojam os detetores sensoriais, as representações correspondentes seguem o mesmo caminho. Representar, p. ex., uma dor no dente molar hoje já inexistente, é tratar de “recriá-la” em um ponto preciso da cavidade bucal e não em uma perna. Isto é claro e vale para todas as representações. Mas aqui é onde surge um dos problemas mais interessantes. A imagem pode modificar-se de tal modo que recriando ao objeto original termina tornando-o irreconhecível. E esta “deformação” foi considerada como um dos defeitos fundamentais da imagem segundo a Psicologia ingênua. Para ela a idéia estava clara: se a imagem era uma simples cópia da sensação que servia a memória para poder recordar, quer dizer, era um instrumento daquilo que chamavam “faculdade da memória”, toda deformação era quase um pecado contra a “natureza”, que já haveriam de enquadrar os psiquiatras da época a enérgicos tratamentos quando alguns desafortunados se excediam em sua alteração da realidade. Mas, zombarias à parte, era evidente que o naturalismo, e não podia ser de outro modo, invadia a Psicologia como a Arte, a Política ou a Economia. Mas eis que este “defeito” da imagem que faz que esta se deforme, se transforme e, por último, se traduza (como nos sonhos) de uma fonte sensorial à localização em outra fonte, mostra não somente a plasticidade do fenômeno mas também sua extraordinária atividade. Será compreensível que desenvolver cada enunciação apresentada sairia dos limites da conferência, assim é que continuaremos com a idéia inicial de mostrar os pontos mais importantes desta investigação. Entre outros, nos encontramos com aquele que mostra a imagem atuando em diferentes níveis de consciência e produzindo diferentes abreações motrizes segundo seja a interiorização ou exteriorização em que esta se acomode. Para confirmar o dito se comprova que uma mesma imagem que possibilita extensão da mão em vigília, ao ser internalizada durante o sonho, não move a este membro salvo casos excepcionais de sonho alterado ou de sonambulismo nos que a imagem tende a externalizar-se no espaço de representação. Ainda em vigília, um forte golpe emocional faz, em ocasiões, que a imagem de fuga ou repulsa se internalize de tal maneira que finalmente o corpo fica paralisado. Inversamente, nos estados alterados de consciência pode-se comprovar como a projeção das imagens, quer dizer, as alucinações, dinamizam a atividade corporal com referência a fontes sensoriais que estão transladadas e que traduzem reelaborações do mundo interno. Desta maneira, a localização da imagem em diferentes posições e profundidades do espaço de representação disparam a atividade corporal. Mas é conveniente lembrar que estamos falando de imagens que têm por base diferentes grupos de sentidos, sejam estes externos ou internos, de maneira que as imagens cenestésicas se trabalham na profundidade e localização correspondente provocarão abreações ou somatizações no intracorpo e as correspondentes à cinestesia serão as que finalmente atuam sobre o corpo desde “dentro” para que este se ponha em movimento. Mas, em que direção o fará o corpo já que a cinestesia delata fenômenos de interioridade? O fará seguindo direções que haverão de “traçar” outras representações que têm os sentidos externos por base sensorial. Inversamente, ao imaginar meu braço estendido para frente comprovarei que este não se move por só este ato, senão que traçarei a direção (segundo comprova a experimentação da mudança de tonicidade muscular), mas este haverá de mover-se quando a imagem visual se traduza em cinestésica.

Avançando um pouco mais, incursionaremos nos temas da natureza do espaço de representação e nos conceitos de copresença, horizonte e paisagem no sistema de representação. Nada novo agregaremos ao dito nos parágrafos 3 e 4 do capítulo 3 de Psicologia da Imagem, salvo no referente a conclusão final deste trabalho.

“Não temos falado de um espaço de representação em si nem de um quase espaço mental. Temos dito que a representação como tal não pode tornar-se independente da espacialidade sem afirmar por isso que a representação ocupe um espaço. É a forma de representação espacial a que temos em conta. Agora bem, quando não mencionamos uma representação e falamos do ‘espaço de representação’, é porque estamos considerando o conjunto de percepções e imagens internas que dão o registro e o tônus corporal e de consciência no que me reconheço como ‘eu’, no que me reconheço como um ‘continuo’, não obstante o fluir e a mudança que experimento. De maneira que esse ‘espaço de representação’ é tal não porque seja um invólucro vazio que deve ser enchido por fenômenos de consciência, senão porque sua natureza é representação e quando sobrevêm determinadas imagens a consciência não pode senão representa-las sob a forma de extensão. Assim, também poderíamos ter enfatizado no aspecto material da coisa representada, referindo-nos à substancialidade, sem por isso falar da imagem no sentido em que o fazem a Física ou a Química. Nos referiríamos, neste caso, aos dados hiléticos, aos dados materiais que provindo da materialidade da sensação não são a materialidade mesma. E, por certo, a ninguém ocorreria pensar que a consciência tem cor, ou que é um continente colorido pelo fato de que as representações visuais sejam apresentadas cromáticamente. Subsiste, não obstante, uma dificuldade. Quando dizemos que o espaço de representação mostra diferentes níveis e profundidades, estamos falando de um espaço volumétrico, tridimensional, ou é a estrutura percepto-representativa de minha cenestesia que se me apresenta volumetricamente? Sem dúvida, trata-se do segundo e é graças a isso que as representações podem aparecer acima ou abaixo, à esquerda ou à direita e até à frente ou atrás, para fora ou para dentro, e que o ‘olhar’ do observador da representação se coloca em relação a imagem também em um lugar em uma perspectiva determinada. Podemos considerar o espaço de representação como a ‘cena’ na que se dá a representação, excluindo dela o ‘olhar’. E, é claro, que em uma cena se desenvolve uma estrutura de imagem que tem ou teve numerosas fontes perceptuais e percepções de imagens anteriores.”

Existe para cada estrutura de representação um sem número de alternativas que não se desdobram totalmente, mas que atuam de forma copresente, acompanhando as imagens que se manifestam na “cena”. Desde logo, aqui não estamos falando de conteúdos “manifestos” e “latentes”, nem de vias associativas que levam a imagem em uma outra direção. Exemplifiquemo-lo assim: quando imagino um objeto de minha casa ainda que não estejam presentes na “cena” outros objetos do mesmo âmbito, estes acompanham copresentemente ao objeto representado; participam do mesmo âmbito em em que se dá o objeto e graças a essa região nas quais estão incluídos outros objetos não presentes, posso fazer desfilar à vontade uns ou outros sempre dentro dos limites que delimitam o que designo como “minha casa”. Assim também, as regiões se estruturam umas com outras não só enquanto conjuntos de imagens, mas também de expressões, significados e relações. A cada região ou conjunto delas posso diferenciá-la de outras comparando a “horizontes”, espécie de limites, que me dão colocação mental e que, ademais, me permitem o translado por tempos e espaços mentais diferentes.

Quando percebo o mundo externo, quando cotidianamente me desenvolvo nele, não somente o constituo pelas representações que me permitem reconhecer e atuar, senão que o constituo ademais por sistemas copresentes de representação. A essa estruturação que faço do mundo, chamo-a “paisagem”, e comprovo que a percepção do mundo é sempre reconhecimento e interpretação de uma realidade de acordo com minha paisagem. Esse mundo que tomo por realidade mesma é minha própria biografia em ação, e essa ação de transformação que efetuo no mundo é minha própria transformação. E quando falo de meu mundo interno, falo também da interpretação que dele faço e da transformação que nele efetuo.

As distinções que temos feito até aqui entre espaço “interno” e espaço “externo”, baseadas nos registros de limite que colocam as percepções cenestésico-táteis, não podem ser efetuadas quando falamos desta globalidade da consciência no mundo para qual o mundo é sua “paisagem” e o eu seu “olhar”. Este modo de a consciência estar no mundo é basicamente um modo de ação em perspectiva cuja referência espacial imediata é o próprio corpo, não apenas o intracorpo. Mas o corpo, ao ser objeto do mundo é também objeto da paisagem e objeto de transformação. O corpo termina desenvolvendo próteses da intencionalidade humana.

Se as imagens permitem reconhecer e atuar, conforme se estruture a paisagem em indivíduos e povos, conforme sejam suas necessidades (ou o que considerem que sejam suas necessidades), assim tenderão a transformar o mundo.

Para concluir com estes comentários sobre Psicologia da Imagem, acrescento que na configuração de toda paisagem atuam copresentemente conteúdos téticos, espécies de crenças ou relações entre crenças que não podem ser sustentadas racionalmente e que acompanhando a cada formulação e a cada ação constituem a base sobre a que se assenta a vida humana em seu desenvolvimento.

Por conseguinte, uma futura teoria da ação haverá de compreender como é esta possível desde sua mais elementar expressão, como é que a atividade do ser humano não é simples reflexo de condições e como é que esta ação ao transformar o mundo transforma também seu produtor. As conclusões a que se chega não serão indiferentes, como tampouco serão as direções que se empreendam, não somente desde o ponto de vista de uma ética futura senão desde a perspectiva das possibilidades do progresso humano.

Vamos passar agora, rapidamente, a comentar o segundo ensaio do presente livro.

Discussões Historiológicas pretende estudar os requisitos prévios necessários que devem cumprir-se para a fundamentação do que chamamos “Historiologia”. Para começar a discussão põe em dúvida se as designações de “Historiografia” ou “Filosofia da História” podem seguir sendo úteis durante muito tempo mais, porque se as têm utilizado com significados tão diversos que é muito difícil chegar a uma determinação do objeto ao qual se referem. O termo “Historiologia” foi cunhado por Ortega por volta de 1928, em seu escrito “A Filosofia da Historia de Hegel e a Historiologia”. Em uma nota de nosso ensaio citamos Ortega quando diz: “É inaceitável na historiografia e filologia atuais o desnível existente entre a precisão, usada ao obter ou manejar os dados, e a imprecisão mais ainda, a miséria intelectual no uso das idéias construtivas. Contra este estado das coisas no reino da história se levanta a Historiología. Vai movida pelo convencimento de que a história, como toda ciência empírica, tem que ser antes de tudo uma construção e não um ‘agregado’... Com a centésima parte dos dados que há tempos estão já recolhidos e trabalhados bastava para elaborar algo de um porte científico muito mais autêntico e substancioso que quanto, com efeito, nos apresentam os livros de história”.

Seguindo, pois, esse debate iniciado há muito tempo, em nosso ensaio se fala de Historiologia no sentido da interpretação e construção de uma teoria coerente na qual os dados históricos em si não podem justapor-se ou manejar-se a modo de simples “crônica” de acontecimentos sob pena de esvaziar ao fato histórico de todo significado. A pretensão de uma História (com maiúscula) alheia a toda interpretação é um contra-senso que tem invalidado numerosos esforços da Historiografia anterior.

Neste trabalho se estuda, desde Heródoto em diante, a visão do feito histórico a partir da introdução da paisagem do historiador na descrição. Deste modo se chega a advertir não menos de quatro deformações da óptica histórica. Em primeiro lugar, a forma intencionada de introdução do próprio momento em que vive o historiador para destacar ou minimizar fatos de acordo com sua perspectiva. Este defeito se observa na apresentação do relato e afeta a transmissão tanto do fato como do mito, a lenda, a religião ou a literatura que servem de fonte. O segundo erro é o da manipulação das fontes que por sua impostura não merece maiores comentários. O terceiro corresponde a simplificação e a estereotipação que permite ressaltar ou desqualificar fatos de acordo com um modelo mais ou menos aceito. É tal a economia de esforço com que se manejam os produtores e os leitores de tais obras, que costumam resultar de grande difusão ainda que de escasso valor científico. Nesses trabalhos, constantemente se substitui a informação verdadeira por “histórias”, por “falatórios” ou informações de segunda mão. E no que diz respeito à quarta deformação que temos anotado, esta se refere à “censura” que, às vezes, não está somente posta na pena do historiador mas sim na cabeça do leitor. Esta censura impede que novos pontos de vista se difundam corretamente porque o momento histórico mesmo, com seu repertório de crenças forma uma barreira tal que somente o tempo, ou acontecimentos dramáticos que desmentem o normalmente aceitado, permitem desanuviá-lo. Nestas discussões, tem-se visto em geral as dificuldades que existem para a apreciação dos acontecimentos mediatos, mas nossa fragilidade cresce ao comprovar que ainda no relato da história imediata, a própria, a biográfica, o sujeito conta a si mesmo ou conta a terceiros, acontecimentos inexistentes ou francamente deformados, todo isso, por sua vez, dentro de um ineludível sistema de interpretação. Se isto é assim, o que não haverá de ocorrer com respeito a acontecimentos que não foram vividos pelo historiador e que formam parte do que chamamos “historia mediata”? De todas as maneiras, o anterior não nos leva necessariamente ao ceticismo histórico, graças a que temos reconhecido a necessidade de que a Historiologia seja construtiva e que, desde logo, cumpra com certas condições se é que vai ser considerada como ciência cabal.

As Discussões continuam, mas agora com o que chamamos “concepções da História sem o fundamento temporal”. Assim comentamos em nosso trabalho, no capítulo 2, parágrafo 1: “Nos numerosos sistemas em que aparece um rudimento de Historiología, todo o esforço parece apontar a justificar a datação, o momento de calendário aceito, esmiuçando como ocorreram, porque ocorreram, ou como deveriam ter ocorrido as coisas, sem considerar o que é isto do ‘ocorrer’, como é possível, em geral, que algo ocorra”. Todos aqueles que empreenderam a construção de verdadeiras catedrais da Filosofia da Historia, na medida em que não responderam a pergunta fundamental pela a natureza do ocorrer, nos apresentaram uma Historia da datação civil aceita, mas sem a dimensão da temporalidade, necessária para que aquela seja apreendida. Em termos gerais, observamos que a concepção do tempo que há primado é aquela própria da percepção ingênua na qual os fatos se desenvolvem sem estruturalidade e em sucessão desde um fenômeno anterior a um posterior, em seqüência lineal, na que cada evento está “um ao lado do outro” sem compreender-se como é que um momento se desvela em outro, sem apreender-se em suma, a transformação íntima dos fatos. Porque dizer que um acontecimento vai desde um momento A até um B, e assim até um momento n; desde um passado, transitando por um presente e projetando-se até um futuro, só nos fala da localização do observador em um tempo de datação convencional fazendo ressaltar a percepção de tempo próprio do historiador e, como percepção que é, espacializando-o para um “atrás” e até um “adiante” de modo em que as engrenagens do relógio espacializam o tempo para mostrar que este transcorre. Compreender isto, não oferece dificuldades ao saber que toda percepção e representação se dá na forma de “espaço”. Agora bem, por que haveria de transcorrer o tempo desde um atrás até um adiante e não, por exemplo, em sentido inverso, ou a “saltos” imprevisíveis? Não pode responder-se com um simples “porque assim é”. Se cada “agora” é, “por ambos os lados”, sucessão indeterminada de instantes, se chega a conclusão de que o tempo é infinito e ao aceitar essa suposta “realidade” se afasta o olhar da finitude do que olha e se transita pela vida com a presença de que o fazer entre as coisas é infinito, ainda que copresentemente se saiba que a vida tem um término. Deste modo, “as coisas que se há que fazer” iludem a morte de cada instante, por isto se “tem” mais ou menos tempo para determinadas coisas, porque “ter” se refere às “coisas” e o mesmo transcorrer da vida se converte em coisa, se naturaliza.

A concepção naturalista do tempo da qual padeceu até hoje a Historiografia e a Filosofia da História repousa na crença da passividade do ser humano na construção do tempo histórico e com ele se chegou a considerar a história humana como “reflexo”, epifenômeno, ou simples polia de transmissão de acontecimentos naturais. E, quando, em um aparente salto do natural ao social, se falou do conjunto humano como produtor do fato histórico, se seguiu arrastando o naturalismo, no que a sociedade se há “especializado” dentro de uma ingênua visão de tempo. Um pensar reflexivo estrito nos leva a compreender que em todo por fazer humano os tempos não se sucedem “naturalmente” senão que construtivamente atuam os instantes passados presentes e futuros, sendo tão determinante o ocorrido em quanto memória e conhecimento como os projetos que se tratam de alcançar pela ação atual. O fato de que o ser humano não possui uma “natureza” de modo em que a tem qualquer objeto, o fato de que sua intenção tenda a superar as determinações naturais mostra sua historicidade radical. É o ser humano o que se constitui e se constrói em sua ação-no-mundo e com isso dota de sentido o seu transcorrer e ao absurdo da não intencional natureza. A finitude, em termos de tempo e espaço está presente como primeira condição absurda, sem sentido, que a natureza impõe a vida humana com claros registros de dor e sofrimento. A luta contra esse absurdo, a superação da dor e o sofrimento, é a que dá sentido ao largo processo da história.

Não continuaremos aqui o difícil e extenso debate em torno do problema da temporalidade, do tema do corpo humano e sua transformação, bem como do mundo natural em próteses crescentes da sociedade, mas sim enunciaremos os pontos principais que, a modo de hipótese, se sustentam no presente ensaio. Em primeiro termo, se estuda a constituição histórica e social da vida humana, buscando a temporalidade interna de sua transformação, distantes da sucessão dos acontecimentos lineares “um ao lado do outro”. Posteriormente, se observa coexistência em um mesmo cenário histórico, de gerações que nasceram em momentos diferentes e cujas paisagens de formação, experiência e projeto não são homogêneos. A dialética geracional, quer dizer, a luta pelo controle do espaço central social, se verifica entre acumulações temporais nas quais prima o passado, o presente ou o futuro e nas quais ditas acumulações estão representadas por gerações de diferentes idades. Por sua vez, as paisagens de cada geração com o substrato de crenças que lhes é próprio, dinamizam sua ação em direção ao mundo. Mas que o nascimento e a morte das gerações seja um fato biológico, não nos permite biologizar sua dialética. Por isso, a concepção ingênua das gerações segundo a qual “os jovens são revolucionários, os de meia idade se tornam conservadores e os mais velhos reacionários”, encontra em numerosas análises históricas, fortes desmentidos que se não são considerados, levam-nos a um novo mito naturalista no quual a glorificação da juventude é seu correlato. O que vai definir o signo da dialética geracional em cada momento histórico haverá de ser o projeto de transformação ou conservação que cada um lance a futuro. Por certo, que são mais de três gerações que coexistem no mesmo cenário histórico, mas o protagonismo está a cargo das que mencionamos, quer dizer, daquelas que resultam contíguas e não das que existem “co-presentemente”, isto é a das crianças e anciãos. Mas como toda estrutura do momento histórico está em transformação, seu signo vai mudando conforme as crianças ingressam a franja juvenil e os de idade madura são deslocados para a ancianidade. Este continuum histórico, nos mostra temporalidade em ação e faz compreender os seres humanos como protagonistas de sua própria história.

Por fim, ao entender o funcionamento da temporalidade resgatamos destas Discussões Historiológicas alguns elementos que, junto aos estudados em Psicologia da Imagem, com referência ao espaço de representação nos permitirão, talvez, fundamentar uma completa teoria da ação. Nada mais, muito obrigado.

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