Ser humano
A referência do ser humano, em situação, é o próprio corpo. Nele se relaciona o seu momento subjetivo com a objetividade, e através dele pode-se compreender como “interioridade”, ou como “exterioridade”, consoante a direção que o ser humano der à sua intenção, ao seu “olhar”. Frente ao ser humano encontra-se tudo o que não é ele próprio e que não responde às suas intenções. Assim, o mundo em geral e os outros corpos humanos, diante dos quais o próprio corpo tem alcance e registra a sua ação, proporcionam as condições nas quais se constitui o ser humano. Estes condicionantes apresentam-se também como possíveis no futuro e na relação futura com o próprio corpo. Desta maneira, a situação presente pode ser compreendida como modificável no futuro. O mundo é experimentado como externo ao corpo, mas o corpo é visto também como parte do mundo, já que atua neste e deste recebe sua ação. A corporeidade é também algo que muda e, neste sentido, é uma configuração temporal, uma historia viva lançada à ação, à possibilidade futura. O corpo, para a consciência humana, torna-se prótese da intenção, responde à intenção, em sentido temporal e em sentido espacial. Temporalmente, porque pode atualizar no futuro a possibilidades da intenção; espacialmente, enquanto representação e imagem da intenção.
Neste acontecer, os objetos são ampliações das possibilidades corporais e os corpos alheios aparecem como multiplicações dessas possibilidades, enquanto são governados por intenções que se reconhecem como similares às que manejam o próprio corpo. Mas, porque necessitaria o ser humano transformar o mundo e se transformar a si mesmo? Pela situação de finitude e carência temporal espacial na qual se encontra e que registra, em acordo com distintos condicionamentos, como dor (física) e sofrimento (mental). Assim, a superação da dor não é simplesmente uma resposta animal, mas sim uma configuração temporal na qual prima o futuro e que se converte num impulso fundamental da vida, mesmo que ela não se encontre urgida num instante dado. Por isso, além da resposta imediata, reflexa e natural, a resposta diferida e a construção para evitar a dor estão impulsionadas pelo sofrimento diante do perigo e são representadas como possibilidades futuras, ou atualidades nas quais a dor está presente em outros seres humanos. A superação da dor aparece, pois, como um projeto básico que guia a ação. É essa intenção a que tem possibilitado a comunicação entre corpos e intenções diversas, naquilo que chamamos de “constituição social”. A constituição social é tão histórica quanto a vida humana; é configuradora da vida humana. Sua transformação é continua, mas, de um modo diferente ao da natureza. Nesta não acontecem mudanças por intenções. Ela se apresenta como um “recurso” para superar a dor e o sofrimento e como um “perigo” para a constituição humana. Por isso, o destino da própria natureza é ser humanizada, intencionada. E o corpo, entanto natureza, entanto perigo e limitação, leva o mesmo desígnio: ser intencionalmente transformado, não somente em posição, mas em disponibilidade motora; não somente em exterioridade, mas em interioridade; não somente em confrontação, mas em adaptação.
Numa conferência de divulgação efetuada em 23/05/91, Silo explicou suas idéias mais gerais sobre o ser humano do seguinte modo: “Quando me observo, não do ponto de vista fisiológico, senão existencial, me encontro colocado num mundo dado, não construído nem escolhido por mim. Encontro-me em situação em relação a fenômenos que, começando por meu próprio corpo, são iniludíveis. O corpo, como constituinte fundamental de minha existência é, além disso, um fenômeno homogêneo com o mundo natural no qual atua e sobre o qual o mundo atua. Mas, a naturalidade do corpo tem para mim diferenças importantes com o resto dos fenômenos, a saber: 1. O registro imediato que dele possuo; 2. o registro que mediante ele tenho dos fenômenos externos e 3. a disponibilidade de alguma de suas operações através de minha intenção imediata. Mas, acontece que o mundo se me apresenta não somente como um conglomerado de objetos naturais, senão como uma articulação de outros seres humanos e objetos produzidos ou modificados por eles. A intenção que advirto em mim aparece como um elemento interpretativo fundamental do comportamento dos outros e, assim como constituo o mundo social por compreensão de intenções, assim também sou constituído por ele. Claro que estamos falando de intenções que se manifestam na ação corporal. É graças às expressões corporais ou à percepção da situação na qual se encontra o outro, que posso compreender seus significados, sua intenção. Por outra parte, os objetos naturais e humanos se me aparecem como prazenteiros ou dolorosos e trato de me localizar diante deles modificando minha situação. Deste modo, não estou fechado ao mundo do natural e dos outros seres humanos, senão que, precisamente, minha característica e a ‘abertura’. Minha consciência tem se configurado intersubjetivamente: usa códigos de raciocínio, modelos emotivos, esquemas de ação, que reconheço como “meus”, mas, que também reconheço em outros. E, claro, está meu corpo aberto ao mundo enquanto o percebo e sobre ele atuo...
O mundo natural, diferentemente do humano, aparece-me sem intenção. Certamente, posso imaginar que as pedras, as plantas e as estrelas possuem intenção, mas, não vejo como chegar a um efetivo dialogo com elas. Ainda nos animais, nos quais às vezes capto a faísca da inteligência, aparecem-me como impenetráveis e em lenta modificação dentro de sua natureza. Vejo sociedades de insetos totalmente estruturadas, mamíferos superiores usando rudimentos técnicos, mas, repetindo seus códigos em lenta modificação genética, como se fossem sempre os primeiros representantes de suas respectivas espécies. E quando comprovo as virtudes dos vegetais e os animais domesticados pelo ser humano, observo a intenção dele abrindo passagem e humanizando o mundo...
É-me insuficiente a definição de ser humano pela sua sociabilidade, já que isso não o distingue de numerosas espécies; tampouco sua força de trabalho é o característico, comparada com a de animais mais poderosos; nem sequer a linguagem o define na sua essência, porque sabemos de códigos e formas de comunicação entre diversos animais. Mas, ao se encontrar cada novo ser humano com um mundo modificado por outros e ser constituído por esse mundo intencionado, descubro sua capacidade de acumulação e incorporação ao temporal; descubro sua dimensão histórico-social e não simplesmente social. Vistas assim as coisas, posso intentar uma definição, dizendo: O ser humano ‘é o ser histórico cujo modo de ação social transforma sua própria natureza’. Se admitir o anterior, terei de aceitar que esse ser pode transformar intencionalmente sua constituição física. E assim está ocorrendo. Começou com a utilização de instrumentos que, colocados diante do seu corpo como ‘próteses’ externas, lhe permitiram alongar sua mão, aperfeiçoar seus sentidos e aumentar sua força e qualidade de trabalho. Naturalmente não estava dotado para os meios líquido e aéreo e, não obstante isso, criou condições para se deslocar por eles, até começar a emigrar do seu meio natural, o planeta Terra. Hoje, além disso, está se internalizando no seu próprio corpo, mudando seus órgãos; intervindo na sua química cerebral; fecundando ‘in vitro e manipulando seus genes. Se com a idéia de ‘natureza’ quis-se assinalar o permanente, tal idéia é hoje inadequada, mesmo se a quisermos aplicar ao mais objetal do ser humano, ou seja, seu corpo. E no que se refere a uma ‘moral natural’, a um ‘direito natural’, ou a instituições naturais, encontramos, de maneira oposta, que nesses campos tudo é histórico-social e nada aí existe por natureza...” E depois de negar a suposta “natureza humana”, conclui com uma breve discussão em torno da “passividade” da consciência: “Contígua à conceção da natureza humana, tem estado a operar outra que nos falou da passividade da consciência. Esta ideologia considerou o homem como uma entidade que operava em resposta aos estímulos do mundo natural. O que começou como simples sensualismo, aos poucos foi deslocado por correntes historicistas que conservaram no seu seio a mesma idéia em relação à passividade. E mesmo quando privilegiaram a atividade e a transformação do mundo por sobre a interpretação dos seus fatos, conceberam dita atividade como resultante de condições externas à consciência... Mas aqueles antigos preconceitos em relação à natureza humana e à passividade da consciência hoje se impõem, transformados em neo-evolucionismo, com critérios tais como o da seleção natural que se estabelece na luta pela sobrevivência do mais apto. Tal conceção zoológica, na sua versão mais recente, ao ser transposta para o mundo humano, tentará superar as anteriores dialéticas de raças ou de classes, por uma dialética estabelecida de acordo com leis econômicas ‘naturais’ que auto regulam toda a atividade social. Assim, mais uma vez, o ser humano concreto fica submergido e objetivado... Mencionámos as conceções que, para explicar o ser humano, começam desde generalidades teóricas e sustentam a existência de uma natureza humana e de uma consciência passiva. Em sentido oposto, sustentamos a necessidade de arrancar desde a particularidade humana; sustentamos o fenômeno histórico-social e não natural do ser humano e também afirmamos a atividade de sua consciência transformadora do mundo, de acordo com sua intenção. Vimos sua vida em situação e o seu corpo como objeto natural percebido imediatamente e submetido também imediatamente a numerosos ditames de sua intenção. Por conseguinte, impõem-se as seguintes perguntas: Como é que a consciência é ativa, isto é, como é que pode intencionar sobre o corpo e através dele transformar o mundo? Em segundo lugar: Como é que a constituição humana é histórico-social? Estas perguntas devem ser respondidas a partir da existência particular, para não recair em generalidades teóricas desde as quais derive depois um sistema de interpretação que negue ser uma interpretação. Para responder à primeira pergunta terá que se apreender com evidência imediata como a intenção atua sobre o corpo e, para responder à segunda, haverá de se partir da evidencia da temporalidade e da intersubjetividade no ser humano e não de leis gerais da Historia e da sociedade.
Precisamente, Silo desenvolve esses dois temas em “Contribuições ao pensamento”. A intenção atuando sobre o corpo através da imagem, constitui o núcleo das explicações de sua “Psicologia da imagem”. O problema da temporalidade está explicado em “Discussões historiológicas”.