Experiências Guiadas
Livro de Silo. Escrito em espanhol em 1988.
Explicação
Conferência autor
El Ateneo. Madri, Espanha. 3 de Novembro de 1989
Ortega apresentava Bergson, no dia 2 de maio de 1916, aqui em Madri, no “El Ateneo”. Nessa oportunidade, explicava que esta sociedade, o “El Ateneo”, era uma instituição de cultivo e de culto das idéias. Acompanhando este ponto de vista, vamos falar aqui, no “El Ateneo”, não de literatura como aparentemente propõe a natureza do livro que apresentamos, não de contos ou narrações (que constituem o material deste trabalho), mas das idéias que originam esses contos e essas narrações.
Desde já, não estamos dizendo que quando se discute um tema literário, as idéias estão ausentes e sim que, geralmente, o enfoque estético é o que se sobressai.
Às vezes, se examina o aspecto formal da obra e, naturalmente, o seu conteúdo. O autor revê as suas experiências e nos aproxima da sua biografia, da sua sensibilidade e da sua percepção de mundo. Em que sentido então, falaremos de idéias? Teremos que ter em conta que esta produção é a aplicação prática de uma teoria da consciência na qual a imagem, enquanto fenômeno de representação, tem especial relevância. É certo que teremos que dizer algumas coisas antes, para quem não teve em mãos o livro que hoje comentamos, porém, essas coisas não irão afetar, com certeza, a transmissão dessa estrutura de idéias, dessa teoria que mencionamos.
Desta maneira, vejamos então a notícia preliminar que pode resultar deste trabalho.
Este livro foi escrito lá pelos anos 80, revisado em 1988 e colocado à vossa consideração há poucos dias... Sobre isto, gostaria de ler o comentarista que diz o seguinte: “O livro está dividido em duas partes. A primeira, chamada ‘narrações’, é um conjunto de doze contos e constitui o corpo mais denso e complexo. A segunda, sob o título de ‘jogo de imagens’, consta de nove descrições mais simples (mas também mais ligeiras) do que as da primeira parte. Este material pode ser considerado a partir de diferentes pontos de vista. O mais superficial nos mostra uma série de relatos breves com final feliz. Eles têm o caráter leve dos rascunhos que se realizam como prática e somente como ‘diversão’. Segundo esta avaliação, trata-se de simples exercícios literários. Um outro enfoque revela esta obra como uma série de práticas psicológicas sustentadas em formas literárias. E isto fica mais claro –continua o comentarista– nas notas ampliatórias e nos comentários que se inserem no final do livro.
Conhecemos as narrações de todo tipo, escritas em primeira pessoa. Essa ‘primeira pessoa’, habitualmente, não é a do leitor, mas a do autor. Neste livro corrige-se tão antiga descortesia, fazendo com que a ambientação de cada conto sirva de moldura para que o leitor preencha a cena com ele mesmo e suas próprias idéias. Colaborando com estes exercícios literários, aparece nos textos um asterisco que marca pausas e ajuda a introduzir, mentalmente, as imagens que transformam um leitor passivo em ator e co-autor de cada descrição. Esta originalidade permite, por sua vez, que uma pessoa leia em voz alta (marcando as interrupções mencionadas) e que outras, ouvindo, imaginem seu próprio ‘nó’ literário. O que nestes escritos é a tônica, em outros mais convencionais destruiria toda seqüência argumentativa.
Deve destacar-se, que em toda peça literária, o leitor ou o espectador (tratando-se de representações teatrais, cinematográficas ou televisivas), pode se identificar mais ou menos com as personagens, porém reconhecendo no momento, ou posteriormente, diferenças entre o ator que aparece inserido na obra e o observador que está ‘fora’ da produção e não é outro senão ele mesmo. Neste livro acontece o contrário; a personagem é o observador, agente e paciente de ações e emoções.
Sendo ou não de nosso agrado estas ‘Experiências Guiadas’, teremos que reconhecer, ao menos, que estamos na presença de uma nova iniciativa literária e que isto, evidentemente, não acontece todo dia”.
E aqui termina a nota explicativa.
Bem, como tem se comentado, trata-se de pequenos contos, em que um asterisco permite deter a seqüência a fim de colocar, nesse momento, a imagem que o leitor ache adequada. Dessa maneira, continua-se o desenvolvimento, mas já dinamizando o novo elemento introduzido. Vejamos um caso que pode ser o da primeira narrativa titulada “A criança”...
“Estou num parque de diversões. É de noite. Vejo por todas das as partes brinquedos mecânicos cheios de luz e movimento... mas não tem ninguém. Contudo, descubro perto de mim uma criança de uns dez anos. Está de costas. Aproximo-me e quando ela se vira para me ver, reparo que sou eu mesmo quando criança.”. Asterisco! Quer dizer, interrupção para me colocar, enquanto imagem, como sugere o escrito. A estória continua... “... pergunto-lhe o que está fazendo ali e me diz algo se referindo a uma injustiça que lhe fizeram. Começa a chorar e a consolo prometendo levá-la aos brinquedos. Ela insiste em falar na injustiça. Então, para entender, começo a lembrar qual foi a injustiça que sofri nessa idade.”. Asterisco!
Como dito anteriormente, está explicada a mecânica da leitura das Experiências Guiadas. Por outro lado, existe um esquema de construção em que todas elas se ajustam. Primeiro, tem uma introdução ao tema e uma ambientação geral; depois, um aumento da tensão “dramática”, por assim dizer; em terceiro lugar, uma representação vital problemática; quarto, um desenlace como solução ao problema; quinto, uma diminuição da tensão geral e sexto, uma saída não abrupta da experiência, geralmente desandando algumas etapas já vistas anteriormente no relato.
Temos que acrescentar algumas outras considerações a respeito da construção do cenário da situação, do contexto em que acontece a experiência. Se colocamos o leitor num ponto em que ele tem contato com ele mesmo, devemos distorcer a estrutura do tempo e do espaço, seguindo o ensinamento que, sobre isto, os próprios sonhos nos dão. Devemos liberar a dinâmica de imagem e tirar as racionalidades que possam impedir um desenvolvimento fluido. Se podemos, ainda, desestabilizar o registro corporal, a posição do corpo no espaço, estaremos em condições de fazer aparecer perguntas referentes a qualquer momento da vida do leitor ou, inclusive, a momentos futuros como possibilidade de ação a realizar. Vamos então a um exemplo que esclareça o que estamos comentando. Para isto, escolhemos a experiência titulada “A Ação Salvadora”.
“Deslocamo-nos velozmente por uma grande estrada. A meu lado dirige uma pessoa que jamais vi antes. Nos assentos traseiros, duas mulheres e um homem, também desconhecidos. O automóvel corre rodeado por outros veículos que correm imprudentemente, como se os motoristas estivessem bêbados ou enlouquecidos.
Não tenho certeza se está amanhecendo ou cai a noite.
“Pergunto ao meu companheiro sobre o que está acontecendo. Ele olha para mim furtivamente e responde numa língua estranha: ‘Rex voluntas!’. “Conecto o rádio que me devolve fortes descargas e ruídos de interferência elétrica. No entanto, chego a ouvir uma voz fraca e metálica que me diz monotonamente: ‘... rex voluntas... rex voluntas...’
“O deslocamento dos veículos vai se tornando lento enquanto vejo no acostamento ao lado numerosos automóveis acidentados e um incêndio que se propaga entre eles. Ao pararmos, abandonamos o carro e corremos em direção ao campo entre um mar de gente que avança apavorada.
“Olho para atrás e vejo entre a fumaça e as chamas muitos desafortunados serem atropelados mortalmente pela multidão, mas, sou obrigado a correr pela fuga precipitada das pessoas, que me leva a empurrões. Nesse delírio tento, inutilmente, me aproximar de uma mulher que protege sua criança enquanto a multidão passa por cima, muitos caindo no chão.
“Era tanta a desordem e a violência, que decido me deslocar numa leve diagonal que me permite separar do conjunto. Aponto para um lugar mais alto. Muitos desfalecidos se prendem à minha roupa, fazendo dela farrapos, mas constato que a densidade de pessoas vai diminuindo. “Um homem se desprende do conjunto e se aproxima correndo. Está com as roupas destruídas e coberto de feridas. Ao chegar, segura meu braço e, gritando feito um louco, indica para abaixo. Não entendo a sua língua, mas acho que quer a minha ajuda para salvar alguém. Eu digo para esperar um pouco porque neste momento é impossível... Sei que não me entende. Seu desespero acaba comigo. O homem, então, tenta voltar e nesse momento faço com que ele caia de bruços. Ele fica no chão gemendo amargamente. Da minha parte, compreendo que salvei a sua vida e a sua consciência, porque ele tentou resgatar alguém, mas foi impedido.
“Subo mais um pouco, chegando a um campo de cultivo. A terra está fofa, estriada por recentes passadas de trator. Escuto à distancia disparos de armas e creio compreender o que está acontecendo. Afasto-me rapidamente do lugar. Depois de um tempo, paro. Tudo está em silêncio. Olho em direção à cidade e vejo um sinistro esplendor.
“Começo a sentir que o solo ondula sob meus pés, e um estrondo que chega das profundidades me adverte sobre o iminente terremoto. Em pouco tempo, perdi o equilíbrio. Fico no chão, lateralmente encolhido, mas olhando para o céu, preso por um forte enjôo. “O tremor cessou. Ali no céu está uma enorme lua, como coberta de sangue. Está um calor insuportável e respiro o ar de uma atmosfera cáustica. Entretanto, continuo sem saber se amanhece ou cai a noite...
“Já sentado, escuto um retumbar crescente. Em pouco tempo, cobrindo o céu, passam centenas de aeronaves, como insetos mortais que se perdem para um ignorado destino.
“Descubro por perto um grande cachorro, que olhando para a lua, começa uivar, quase como um lobo. Chamo-o. O animal se aproxima timidamente. Chega a meu lado. Acaricio longamente os pêlos arrepiados. Noto um intermitente tremor no seu corpo.
“O cachorro se separou de mim e começa a se distanciar. Levanto-me e o persigo. Assim, percorremos um espaço, já pedregoso, até chegar a um riacho. O animal sedento atira-se e começa a beber água com avidez, mas no mesmo instante volta atrás e cai. Aproximo-me, toco nele e verifico que está morto.
“Sinto um novo tremor que ameaça me derrubar, mas passa.
“Girando sobre meus calcanhares percebo no céu, de longe, quatro formações de nuvens que investem com um surdo retumbar de trovões. A primeira é branca, a segunda, vermelha, a terceira, negra e a quarta, amarela. E essas nuvens se assemelham a quatro cavaleiros armados sobre cavalgaduras de tormenta, percorrendo os céus e assolando toda a vida na Terra. Corro, tentando escapar das nuvens. Compreendo que se a chuva me pega ficarei contaminado. Continuo indo para a estrada, mas, de repente, ergue-se a minha frente uma figura colossal. É um gigante que fecha o caminho agitando ameaçadoramente uma espada de fogo. Grito-lhe que devo continuar porque as nuvens radioativas estavam vindo. Ele responde que é um robô colocado ali para impedir o caminho das pessoas destrutivas. Acrescenta que está armado com raios e assim adverte que não chegue perto. Vejo que o colosso separa claramente dois espaços; aquele do qual eu vim, pedregoso e mortiço, desse outro cheio de vegetação e vida. Então eu grito: ‘Você tem que me deixar passar porque eu fiz uma boa ação!’.
“O que é uma boa ação? – pergunta o robô.
“É uma ação que constrói, que colabora com a vida – respondo.
“Pois bem – acrescenta -, o que tem feito de bom?
“Eu salvei de um ser humano de uma morte segura e, além disso, salvei a sua consciência.
“Imediatamente, o gigante se afasta e pulo para o terreno protegido, no momento em que caem as primeiras gotas de chuva...”
Até aqui o relato. Numa nota se faz o seguinte comentário: “O estranhamento geral do argumento foi conseguido destacando a indefinição do tempo (‘não tenho certeza se está amanhecendo ou cai a noite’); confrontando espaços (‘vejo que o colosso separa claramente dois espaços; aquele do qual eu vim, pedregoso e mortiço, desse outro cheio de vegetação e vida’); cortando a possibilidade de conexão com outras pessoas, ou induzindo uma grande confusão de línguas (Pergunto ao meu companheiro sobre o que está acontecendo. Olha para mim furtivamente e responde numa língua estranha: ‘Rex voluntas!’). Por último, deixando o protagonista à mercê de forças incontroláveis (calor, terremotos, estranhos fenômenos astronômicos, águas e atmosfera contaminadas, clima de guerra, gigante armado, etc.). O corpo do sujeito é desestabilizado sucessivamente: empurrões, andar sobre a terra fofa, recentemente lavrada, caída pela ação do tremor.
Em muitas experiências, o esquema do cenário comentado, se repete, mas com imagens diferentes e enfatizando o ponto particular que se quer tratar. Por exemplo, na experiência chamada “O grande erro” tudo gira ao redor de uma espécie de mal-entendido, confrontado a partir da confusão das perspectivas. Por sua vez, como se trata de um acontecimento que tem que ser mudado no passado, um acontecimento em nossa vida que gostaríamos que tivesse se apresentado de uma outra maneira, devemos produzir alterações tempo-espaciais que modifiquem a percepção dos fenômenos e terminem por modificar a perspectiva desde a qual vemos nosso passado. Desta maneira, é mais possível não só modificar os fatos que aconteceram, mas também o ponto de vista sobre os mesmos e, nesse caso, a integração de tais conteúdos muda consideravelmente. Vamos a uma parte deste conto.
“Estou de pé, em frente a uma espécie de Tribunal. A sala, cheia de gente, permanece em silêncio. Por todos os lados vejo rostos severos. Cortando a tremenda tensão acumulada na sala, o Secretário (ajeitando seus óculos), pega um papel e anuncia solenemente: ‘Este Tribunal condena o acusado à pena de morte’. Imediatamente, produz-se uma gritaria. Há quem bata palma, outros assoviam. Chego a ver uma mulher que cai desmaiada. Depois, um funcionário consegue impor silêncio. O Secretário fixa um olhar revoltado enquanto pergunta: ‘Alguma coisa a dizer?’. Respondo que sim. Então, todo mundo volta aos seus lugares. Imediatamente, peço um copo com água e depois de alguma agitação na sala, alguém o traz. Levo-o para a boca e bebo um gole. Completo a ação com um sonoro e demorado gargarejo. Depois eu digo: ‘pronto!’. Alguém do Tribunal me repreende asperamente: ‘como assim, pronto?’. Respondo-lhe que sim, pronto. Em todo caso, para conformá-lo, lhe digo que a água do lugar é muito boa, que quem podia crer, e mais duas ou três gentilezas do estilo...
“ O Secretário termina de ler o papel com estas palavras: ‘...logo, a sentença será cumprida hoje mesmo, deixando-o no deserto sem alimentos e sem água. Sobretudo, sem água. Tenho dito!’. Contesto-lhe com força: ‘Como assim, tenho dito!’. O Secretário curvando as sobrancelhas afirma: ‘O que tenho dito, tenho dito!’.
“Pouco tempo depois encontro-me no meio do deserto viajando num veículo e escoltado por dois bombeiros. Paramos e um deles disse: ‘Desça!’. Então eu desço. O veículo gira e volta por onde veio. Eu vejo-o diminuir cada vez mais na medida que se afasta entre as dunas.”. No conto, ocorrem, depois, alguns incidentes e finalmente, acontece isto:
“A tormenta passou, o sol se pôs. No crepúsculo, vejo ante mim uma semi-esfera esbranquiçada, grande como um prédio de vários andares. Acho que se trata de uma miragem. Todavia, me reclino dirigindo-me a ela. A pouca distância, reparo que a estrutura é de um material liso, como plástico espelhado, talvez preenchido com ar comprimido.
“Um sujeito vestido com o costume beduíno me recebe. Entramos por um tubo atapetado. Uma porta se abre enquanto uma corrente de ar refrescante me surpreende. Estamos no interior da estrutura. Observo que tudo está invertido. Poderia se dizer que o teto é um piso plano do qual pendem diversos objetos: mesas redondas elevadas com as patas para cima; águas que, caindo a jorros, se curvam e retornam a subir, e formas humanas sentadas no alto. Ao perceber o meu estranhamento, o beduíno me dá uns óculos, enquanto diz: ‘coloque!’. Obedeço e a normalidade se restabelece. Vejo na frente uma fonte que expele jorros verticais de água. Há mesas e diversos objetos agradavelmente combinados em cor e forma. “O Secretário se aproxima engatinhando. Diz que está terrivelmente enjoado. Então, explico que está vendo a realidade às avessas e que tem que tirar os óculos. Ele os tira e se incorpora suspirando, enquanto diz: ‘Agora está tudo bem, mas acontece que enxergo pouco.’ Depois, acrescenta que estava me procurando para explicar que eu não sou a pessoa que devia ser julgada, que tinha sido uma lamentável confusão. Imediatamente, sai por uma porta lateral.
“ Andando uns passos, encontro com um grupo de pessoas sentadas em círculo sobre umas almofadas. São anciãos de ambos os sexos com características raciais e vestimentas diferentes. Todos eles possuem belos rostos. Cada vez que um abre a boca, brotam dela sons como os de engrenagens longínquas, de máquinas gigantes, de relógios imensos. Porém, também escuto a intermitência dos trovões, o estalo das rochas, o desprendimento das estalactites, o rítmico rugir de vulcões, o breve impacto da suave chuva, o surdo agitar de corações; o motor, o músculo, a vida... tudo aquilo em harmonizado e perfeito, como numa orquestra magistral.
“O beduíno me dá uns fones, dizendo: ‘coloque-os são tradutores’. Ajeito-os e ouço claramente uma voz humana. Compreendo que é a mesma sinfonia de um dos anciãos, traduzida para meu torpe ouvido. Agora, quando ele abre a boca escuto: ‘... somos as horas, somos os minutos, somos os segundos, somos as distintas formas do tempo. Como houve um erro contigo, vamos te dar a oportunidade de recomeçar a tua vida. Por onde quer recomeçar? Talvez no teu nascimento... talvez um instante antes do primeiro fracasso. Reflita. Asterisco! !”, etc., etc..
Devemos adicionar agora algumas considerações a respeito do tipo de imagens usadas, porque parece que as descrições contam com um forte componente visual e acontece que uma boa parte da população trabalha habitualmente com um tipo de representação auditiva, ou kinestésica ou cenestésica, ou em todo caso, mista. Sobre isto, gostaria de ler alguns parágrafos extraídos de uma das minhas produções mais recentes, do livro “Psicologia da Imagem”. Ali se diz o seguinte:
“Os psicólogos de todas as épocas tem articulado longas listas em torno das sensações e percepções e, atualmente, ao descobrir novos receptores nervosos, começou-se a falar dos termoceptores, baroceptores, detectores de acidez e alcalinidade interna, etc. Acrescentaremos às sensações correspondentes aos sentidos externos, aquelas que correspondem a sentidos difusos como as kinestésicas (de movimento e posicionamento corporal) e as cenestésicas (registro geral do intracorpo e de temperatura, dor, etc., que ainda explicadas em termos de sentido táctil interno não podem reduzir-se a ele)”.
Para nossas explicações, as anotações apresentadas são suficientes, mas não pretendemos esgotar os possíveis registros que correspondem aos sentidos internos e às múltiplas combinações perceptuais entre uns e outros. Importa, então, estabelecer um paralelo entre representações e percepções classificadas genericamente como “internas” e “externas”. É um infortúnio, que tenha se limitado tão freqüentemente a representação às imagens visuais e que a espacialidade esteja referida quase sempre ao visual, quando as percepções e representações auditivas denotam também as fontes de estímulo localizadas em algum “lugar”, assim como acontece com as tácteis, olfativas, gustativas e, certamente, com as referentes à posição do corpo e aos fenômenos do intracorpo. Desde 1943, tinha se observado no laboratório, que distintos indivíduos eram propensos a outro tipo de imagens não visuais. Isto levou G. Walter, em 1967, a formular uma classificação em tipos imaginativos de distinta predominância.
Independentemente desta acertada apresentação, começou a se destacar entre os psicólogos a idéia de que o reconhecimento do próprio corpo no espaço ou a lembrança de um objeto, muitas vezes, não tinha por base a imagem visual. Ainda mais, começou a ser considerado com mais seriedade o caso dos sujeitos perfeitamente normais, que descreviam sua “cegueira” quanto à representação visual. Já não se tratava, a partir destas comprovações, de considerar as imagens visuais como núcleo do sistema de representação, jogando outras formas imaginativas no lixo da “desintegração eidética” ou no campo da literatura em que idiotas e retardados dizem coisas como um dos personagens de “O Som e a Fúria”, de Faulkner: ‘Eu não podia ver, mas as minhas mãos a viam, e podia ouvir que estava anoitecendo, e minhas mãos viam o chinelo, mas eu não podia vê-lo, mas minhas mãos podiam ver o chinelo, e eu estava de joelhos, ouvindo como anoitecia’.
Continuando com o nosso estudo sobre as Experiências Guiadas, concordamos em que, ainda expostas com predominância visual, qualquer pessoa pode adaptar para si mesma o sistema de representação. Por outro lado, não faltam aquelas em que, claramente trabalha-se sobre outro tipo de imagem. É o caso de “O Animal”, experiência da qual passo a ler algum parágrafo.
“Estou num lugar totalmente escuro. Tateando com o pé, sinto o terreno quase vegetal. Sei que em algum lugar há um abismo. Percebo muito perto esse animal que sempre me provocou a inconfundível sensação de nojo e terror. Talvez um animal, talvez muitos... mas é certo que algo se aproxima irremissivelmente. Um zumbido em meus ouvidos, às vezes confundido com um vento distante, contrasta o silêncio definitivo. Meus olhos bem abertos não vêem, meu coração se agita e se a respiração é fina que nem uma linha, a garganta oprime o passo de um sabor amargo... Algo se aproxima, mas o que tem atrás de mim que me arrepia e esfria minhas costas como gelo? Minhas pernas fraquejam e se alguma coisa me pega ou roça com seu hálito, ou pula sobre mim por atrás, não terei defesa alguma. Estou paralisado... só espero”.
Vejamos outro caso, mas agora, de diferentes tipos de imagens e de tradução de um sistema de representação a outro. Para isto, pode nos ajudar uma parte da experiência chamada “O Festival”.
“Deitado na cama, creio estar no quarto de um hospital. Ouço apenas o gotejamento de uma torneira mal fechada... Tento mexer os membros e a cabeça, mas não respondem. Com esforço mantenho as pálpebras abertas. O teto é branco e liso. Cada gota de água que escuto cair, cintila na sua superfície como um traço de luz. Uma gota, um traço. Depois outro. Depois muitas linhas. Mais adiante, ondulações. O teto vai se modificando, acompanhando o ritmo do meu coração. Pode ser um efeito das artérias dos meus olhos, ao passarem os golpes de sangue. O ritmo vai desenhando o rosto de uma pessoa jovem”. E mais na adiante, nesta mesma experiência, traspassa-se a percepção visual e é incluída num sistema de representação mais complexo traduzido em outras percepções e, assim, a outras representações.
“Presto atenção numa flor ligada ao seu galho por um caule fino de pele transparente, em cujo interior vai se aprofundando o verde reluzente. Estendo a mão passando com suavidade um dedo pelo caule liso e fresco, apenas interrompido por pequeníssimas saliências. Desta maneira, subindo por dentre as folhas de esmeralda, chego às pétalas que se abrem numa explosão multicolorida. Pétalas como cristais de catedral solene, pétalas como rubis e como fogo de lenhas amanhecidas numa fogueira... E nesta dança de matizes, sinto que a flor vive como se fosse parte de mim. E a flor, agitada pelo contato, libera uma preguiçosa gota de orvalho, presa apenas por uma pétala final. A gota vibra, depois se estica e já solta no vazio se aplana para se arredondar novamente, caindo num tempo sem fim. Caindo, caindo, no espaço sem limite... Por último, bate no chapéu de um cogumelo, rola por ele como um pesado mercúrio para se deslizar até suas bordas. Ali, num espasmo de liberdade, atira-se sobre uma pequena poça em que levanta a tormentoso onda que banha uma ilha de pedra-mármore. Na frente se desenvolve o festival e eu sei que a música me comunica com essa garota que olha os seus vestidos e com o homem jovem que, acariciando um gato azul, encosta-se na árvore. Sei que vivi isto anteriormente e que captei a rugosa silhueta da árvore e as diferenças de volume dos corpos. Nas bichos-da-seda que voam ao meu redor, reconheço o calor dos lábios, a fragilidade dos sonhos felizes”. Etc..
Porém, nas experiências, as imagens não estão somente colocadas diante do sujeito ou ao seu redor, e sim no seu interior. É conveniente reconhecer aqui, que em determinados sonhos, aquele que dorme se vê na cena entre outros objetos, quer dizer, que o seu olhar é “externo”. Mas também acontece que, às vezes, o sonhador vê a cena desde si mesmo, quase como em vigília. Seu olhar se faz interno. Na representação cotidiana, agora mesmo, vemos as coisas externas como “externas”, isto é, que nosso olhar está “atrás” de um limite cenestésico-tátil dado pelo registro dos próprios olhos e do rosto e da cabeça. Deste modo, posso fechar os olhos e representar o que vi anteriormente. Todavia, experimento isto como “fora” embora esteja vendo, não de fora, como na percepção, mas na realidade “dentro” do meu espaço de representação. De qualquer forma, meu olhar está separado do objeto: vejo-o fora de mim apesar de representá-lo, por assim dizer, “dentro da minha cabeça” Quando na experiência da criança, me vejo quando pequeno, vejo na realidade a criança desde o meu registro atual em que me reconheço. Isto é, vejo a criança fora de mim, desde meu olhar interno atual. Bem, a criança (que sou eu antes), fala agora comigo de uma injustiça que lhe fizeram e, para saber de que se trata faço um esforço para lembrar (eu atual, não a criança que vejo) aquilo que me aconteceu quando era criança (esse-que-sou-eu-antes). Quando faço isso, meu olhar vai para “dentro” de mim, para as minhas lembranças, e a criança que vejo está fora da direção da minha lembrança. De modo que, ao me encontrar a mim mesmo numa cena infantil, de que maneira me reconheço verdadeiramente como eu mesmo? Não há dúvida de que, com um olhar externo para mim, mas interno com referência à exterioridade neste caso, da criança do parque de diversões. Isto propõe questões interessantes, mas para organizar o tema, digamos que, em geral, posso falar de representações colocadas como “fora” e de outras colocadas como “dentro”, lembrando que o “fora” e o “dentro”, estão sendo considerados simplesmente desde a diferença que põe o limite cenestésico-tátil de olhos, rosto e cabeça. Compreendido tudo isto, vejamos alguns exemplos de diferenças na colocação dos olhares e as cenas. Na experiência chamada “O limpador de chaminés”, se diz:
“Depois de um tempo, o limpador de chaminés se levanta e pega um objeto comprido, ligeiramente curvo. Ele o coloca na minha frente e diz: ‘Abra a boca!’. Eu obedeço. Depois, sinto que ele introduz essa espécie de pinça comprida que chega até meu estômago. Contudo, reparo que posso tolerá-la... De repente, grita: ‘Eu o peguei!’, e começa a tirar o objeto aos poucos. No princípio, sinto desgarrar alguma coisa, mas depois sinto que se produz em mim uma sensação prazerosa, como se desde as entranhas e os pulmões fosse se desprendendo alguma coisa que estava malignamente aderida durante muito tempo”. Está claro aqui, que estamos trabalhando com registros cenestésicos, imagens do intracorpo, mas quando o que foi imaginado “fora” (da mesma forma que o que se percebe “fora” na vida cotidiana) produz ações no intracorpo, o tipo de modificação de cena e olhar acompanha a mecânica que vimos no relato da criança, somente que o que foi imaginado como “fora” não é como a criança visualmente considerada, e sim que no “fora” ponho uma espécie de registro cenestésico, não enquanto sinto algo no meu interior e agora esse sentir está fora do meu corpo, mas o sentido no meu interior é externo ao meu olhar (ou a um novo registro cenestésico que se internaliza ainda mais). Sem este mecanismo de mudança na posição e perspectiva do olhar e a cena, não seriam viáveis numerosos fenômenos da vida diária. Como seria possível que um objeto externo me produzisse repugnância tão só pelo fato de olhá-lo? Como poderia “sentir” esse horror pelo corte sofrido na pele do outro? Como poderia ser solidário com a dor humana e com o sofrimento e o prazer dos outros?
Examinemos uns parágrafos da experiência conhecida como “O Par Ideal”.
“Caminhando por um espaço aberto, destinado a exposições industriais, vejo galpões e maquinaria. Tem muitas crianças às quais foram destinados brinquedos de alta tecnologia. Aproximo-me até um gigante feito de material sólido. Está de pé. Tem uma cabeça grande pintada em cores vivas. Uma escada chega até a sua boca. Por ela sobem os pequenos até a enorme cavidade e, quando algum entra, esta se fecha suavemente. Pouco tempo depois, a criança sai expulsa pela parte traseira do gigante se deslizando por um escorregador que termina na areia. Vão entrando e saindo um a um, acompanhados pela música que brota do gigante: ‘Gargantúa engula as crianças com muito cuidado sem fazer-lhes mal, hahaha, hahaha, com muito cuidado sem fazer-lhes mal’. Decido subir pela escada e entrando na enorme boca, encontro um recepcionista que me diz: ‘as crianças vão pelo escorregador, os grandes pelo elevador’. O homem continua dando explicações enquanto descemos por um tubo transparente. Num momento lhe digo que já devíamos estar no chão. Ele comenta que ainda estamos pelo esôfago, já que o resto do corpo está sob a terra, à diferença do gigante infantil, que está inteiramente na superfície. Sim, tem dois Gargantúas em um – me informa -, o das crianças e o dos grandes... Já passamos o diafragma, de maneira que logo chegaremos num lugar muito simpático. Veja, agora que a porta do nosso elevador se abra, aparece o estômago... Quer descer aqui? Como você vê, é um moderno restaurante, onde é servida comida de todas as partes do mundo”.
A colocação das imagens «externas» atuando sobre a representação interna tem na experiência de «O Mineiro» uma melhor expressão. Assim, «Grito com todas as minhas forças e o chão cede me arrastando no seu desmoronamento... Um forte puxão na cintura coincide com a súbita parada da queda. Fico suspenso de uma corda como um absurdo pêndulo coberto de lama. Minha queda, pois, foi detida bem perto de um piso atapetado. Vejo agora, no ambiente iluminado, uma elegante sala na qual distingo uma espécie de laboratório e enormes bibliotecas. Porém, a urgência da situação faz com que eu fique preocupado em sair dela. De maneira que, com a mão esquerda ajusto a corda tensa e com a outra solto a fivela que a prende minha cintura. Depois, caio suavemente sobre o tapete. ‘Que modos, amigo!... que modos!’, diz uma voz aflautada. Giro sobre meus pés e fico paralisado. Na minha frente tem um homenzinho de, talvez, sessenta centímetros de altura. A não ser por suas orelhas ligeiramente pontiagudas, diria-se que é bem proporcionado. Está vestido com alegres cores, mas com um inconfundível estilo de mineiro. Sinto-me entre ridículo e desolado quando ele me oferece um coquetel. De qualquer modo, me reconforto bebendo sem pestanejar. O homenzinho junta suas mãos e as leva diante da boca a modo de megafone. Em seguida, emite um som zombador. Pergunto o que significa essa gozação e responde que graças a ela a minha digestão irá funcionar melhor no futuro. A personagem continua explicando que a corda que apertou a minha cintura e abdome na queda, fizeram um bom trabalho. Para terminar o seu estranho comentário, ele pergunta se tem algum significado para mim a frase: ‘Você está nas entranhas da terra’. Respondo que é uma maneira figurada de dizer as coisas, mas ele contesta que, neste caso, trata-se de uma grande verdade. Então acrescenta: ‘Você está nas suas próprias entranhas. Quando alguma coisa vai mal nas vísceras, as pessoas pensam coisas perdidas. Por sua vez, os pensamentos negativos prejudicam as vísceras. Deste modo, de agora em diante você cuidará deste assunto. Se não o fizer, começarei a andar e você sentirá fortes cócegas e todo tipo de mal-estar internos... Tenho alguns colegas que se encarregam de outras partes, como os pulmões, o coração, etc.. Dito isto, o homenzinho começa a andar pelas paredes e o teto, ao mesmo tempo que registro tensões na zona abdominal, no fígado e nos rins. Em seguida, ele joga um jorro de água com uma mangueira de ouro, limpando cuidadosamente a lama. Fico seco no instante. Deito num espaçoso sofá e começo a relaxar. O homenzinho passa ritmicamente uma escovinha pelo meu abdome e cintura, conseguindo um notável relaxamento nesses lugares. Compreendo que aliviando o mal-estar do estômago, fígado ou rins, mudam as minhas idéias e sentimentos. Percebo uma vibração. Sinto que estou me elevando. Estou no elevador de carga subindo para a superfície da terra, para o mundo exterior».
Nesta experiência, o homenzinho nos resultou um verdadeiro expert da teoria da imagem cenestésica. Naturalmente, não nos disse como é que uma imagem pode se conectar com o intracorpo e atuar nele.
Anteriormente, vimos, com alguma dificuldade, que a percepção de objetos externos servia de base para a elaboração da imagem e que ela permitia apresentar novamente o apresentado previamente aos sentidos. Vimos que na representação produziam-se variações de colocação, de perspectiva do «olhar» do observador a respeito de uma cena dada e nos perguntávamos pela conexão entre o que foi percebido frente a um objeto desagradável e nossas reações internas. Agora estamos discutindo sobre as sensações do intracorpo que servem de base para as representações também «internas». O fato é que, estamos cheios de perguntas sem respostas exaustivas e temo que o nosso desenvolvimento fique truncado. De qualquer forma, gostaria de agregar algumas considerações.
Enquanto se continue considerando a imagem como uma simples cópia da percepção, enquanto se continue acreditando que a consciência em geral mantém uma atitude passiva perante o mundo respondendo a ele como reflexo, não poderemos responder nem às perguntas anteriores nem às outras, na verdade, fundamentais.
Para nós, a imagem é uma forma ativa de se colocar a consciência (como estrutura) no mundo. Ela pode atuar sobre o próprio corpo e o corpo no mundo, dada a intencionalidade que se dirige para fora de si e não responde simplesmente a um para si ou a um em si natural, reflexo e mecânico. A imagem atua numa estrutura espaço-temporal e numa «espacialidade» interna que chamamos, justamente, «espaço de representação». As diferentes e complexas funções que a imagem cumpre dependem, em geral, da posição que assume em dita espacialidade. A justificação plena disto que afirmamos, exige a compreensão de nossa teoria da consciência e, por isto, remetemos o nosso trabalho sobre Psicologia da Imagem. Porém, se através destes «entretenimentos literários», como disse o nosso comentarista, se através destas narrações ou contos, pudermos ver o aspecto aplicado de uma concepção muito extensa, não falhamos ao prometido no começo de nossa explicação, quando dissemos que iríamos nos ocupar deste escrito, destas Experiências Guiadas, não do ponto de vista literário, mas a partir das idéias que dão lugar a esta expressão literária.
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